O LEGADO DE DOM HELDER CAMARA
O LEGADO DE DOM HELDER CAMARA
Frei Betto O arcebispo Dom Helder Camara (1909-1999) é figura singular na história da Igreja Católica no Brasil. Diminuto, magérrimo, poucos o superavam em oratória: adornava as ideias com gestos efusivos e um senso de humor incomum ao se tratar de bispos. Por onde andasse, lotava auditórios: Paris, Nova York, Roma... Entre os anos de 1960-80, apenas dois brasileiros gozavam de ampla popularidade no exterior: Pelé e Dom Helder. Tamanho o carisma dele que, em 1971, em Paris, convidado a falar num salão capaz de comportar 2 mil pessoas, tiveram que transferi-lo para o Palácio de Esportes, que abriga 12 mil. Hábitos simples Conheci-o em 1962, ao chegar ao Rio, vindo de Minas, para integrar a direção nacional da JEC (Juventude Estudantil Católica). Dom Helder era bispo-auxiliar da arquidiocese carioca e responsável pela Ação Católica. Vivia de seu salário como assessor técnico (aprovado em concurso público) do Ministério da Educação, morava modestamente, almoçava em botequim – ou melhor, beliscava, pois a vida toda comeu como passarinho – e subia as favelas como quem se sente em casa, sempre trajando batina, hábito mantido por toda a vida, mesmo quando o Concílio Vaticano II (1962-1965) permitiu os clérigos saírem à rua em trajes civis. Desde de seus tempos de seminarista em Fortaleza – pois nascera em Messejana, hoje bairro da capital cearense – Dom Helder cultivava hábitos incomuns: deitava-se por volta das dez ou onze da noite, levantava-se às duas da madrugada, trocava a cama por uma cadeira de balanço, na qual orava, meditava, lia e escrevia cartas e poemas. Todos os seus livros foram concebidos naquele momento de “vigília”, como dizia. Às quatro retornava ao leito, dormia por mais uma hora para, em seguida, celebrar missa e iniciar seu dia de trabalho. Com frequência Dom Helder visitava a “república” das Laranjeiras, onde se amontoavam os estudantes dirigentes da JEC e da JUC (Juventude Universitária Católica). Betinho (Herbert Jose de Souza) e José Serra, líderes estudantis, encontravam ali hospedagem garantida ao vir de Minas ou São Paulo. Era Dom Helder quem nos assegurava, graças a seus relacionamentos em todas as camadas sociais, passagens aéreas pelo Brasil, bolsas de estudos, e até alimentação. Na época, o governo dos EUA, preocupado com a ameaça comunista na América Latina (sobretudo após a vitória da Revolução Cubana), lançara a campanha “Aliança para o Progresso”, que consistia, basicamente, em remeter alimentos às famílias miseráveis. Para socorrer-nos da penúria na “república”, Dom Helder, responsável pela distribuição dos donativos, nos enviava caixas de papelão contendo o que denominávamos “leite da Jaqueline” e “queijo do Kennedy”. Como os produtos ficavam meses no porto, sujeitos ao calor carioca, vários de nós tivemos problemas de saúde por ingerir tais produtos. Senso de oportunidade O maior sonho de Dom Helder era a erradicação da miséria no mundo. Sonhava com o ano 2000 sem fome. Ainda no Rio, criou o Banco da Providência e a Cruzada São Sebastião, no intuito de pôr fim às favelas. Graças a doações, edificou no Leblon um conjunto de prédios, para cujos apartamentos transferiu famílias de uma favela próxima. Não deu certo. Sem recursos para pagar os impostos (luz, água, telefone...), os moradores passaram a sublocar os domicílios e a obter renda graças à venda de torneiras, pias e outros utensílios. Para angariar recursos a suas obras, Dom Helder não titubeava em comparecer a programas de auditório de grande audiência televisiva. De certa feita, foi convidado por um apresentador para sortear prendas expostas no palco e vistas por todos, exceto pela pessoa trancada numa cabine opaca. Calhou de ser um desempregado. “Seu Joaquim, o senhor troca isto por aquilo?” E sem nomear o objeto, Dom Helder apontava um liquidificador e, em seguida, um carro. Seu Joaquim respondia “sim” e toda a platéia vibrava. Em seguida, Dom Helder indagou se trocava o carro por um abridor de latas. O homem topou. E não mais arredou pé, cismou que escolhera a melhor prenda. Ao sair da cabine, recebeu dos patrocinadores, decepcionado, o abridor. E Dom Helder mereceu um polpudo cheque. O arcebispo não teve dúvidas: “Seu Joaquim, o senhor troca este cheque pelo abridor?” No dia seguinte, no Palácio São Joaquim, onde funcionava a cúria do Rio, criticamos Dom Helder por ter aberto mão de um recurso que poderia reforçar suas obras sociais. Ele justificou-se: “Perdi o cheque, ganhei